Património geológico e geoconservação:
definições, conceitos e panorama histórico
A
conservação da natureza é uma temática recorrente e muito difundida no mundo
pós-moderno. Este assunto ganhou maior evidência na segunda metade do século
XX, na sequência de uma série de fatores, dentre os quais destacamos o
crescimento e condensação populacional e a deterioração da qualidade de vida
dos seres humanos. Em alguns locais, esta deterioração da qualidade ambiental
começou a afetar as condições de sobrevivência do homem, evocando a necessidade
de alteração dos padrões de ocupação humana e adoção de práticas
conservacionistas. Desta forma, a ideia de conservação da natureza traz em si
uma perspectiva antropocêntrica, focada na ideia da natureza como fonte de
recursos e de qualidade de vida para os seres humanos.
Desde os
seus primórdios, a temática da conservação da natureza esteve, na maioria das
vezes, focada na conservação da biodiversidade, chegando muitas vezes consideradas
como sinónimos. Por outro lado, a conservação do património abiótico esteve
sempre à margem desta temática e, somente na década de 70 do século XX, começam
a surgir esforços sistemáticos para a inclusão da conservação da geodiversidade
nas políticas e iniciativas de conservação da natureza. Este fato deve-se a uma
série de fatores, porém o foco profissional da maioria dos geólogos na
prospecção, extração e uso dos recursos naturais é a causa principal deste
papel menor da geologia na conservação ambiental.
Jazidas fossilíferas do Paleozóico
Fonte: www.paleozoicovalongo.com
A respeito
desta discussão sobre a importância da conservação da geodiversidade vs
conservação do património natural e do grande destaque alcançado pela
conservação da biodiversidade, vale a pena realçar que a geoconservação adotou
uma terminologia distinta, colocando-se, de certa forma, à parte desta
temática, enquanto que a conservação da biodiversidade não chegou a criar um
termo apenas para si, sendo ainda muitas vezes designada como sinónimo de
conservação da natureza.
É de
salientar que o nível de desenvolvimento tecnológico alcançado pela sociedade
atual está altamente dependente da disponibilidade de recursos naturais que,
por sua vez, fazem parte da geodiversidade. Desta forma, torna-se claro que a
conservação dos elementos da geodiversidade como um todo é uma tarefa inviável,
tornando-se necessário um levantamento dos aspectos realmente relevantes e
significativos de uma determinada região, sob os pontos de vista científico,
pedagógico, turístico, recreativo e da conservação do património natural. Ou
seja, para se estabelecer um plano de geoconservação, deve-se definir o que é
realmente passível de ser foco de práticas específicas de gestão e conservação.
De acordo com Brilha (2005), a geoconservação, em sentido amplo, tem como
objetivo a utilização e gestão sustentável de toda a geodiversidade, englobando
todo o tipo de recursos geológicos. Segundo Sharples (2002) resume o conceito
de geoconservação, desta forma: “A geoconservação
tem como objetivo a preservação da diversidade natural (ou Geodiversidade) de
significativos aspetos e processos geológicos (substrato), geomorfológicos
(formas de paisagem) e de solo, mantendo a evolução natural (velocidade e
intensidade) desses aspetos e processos”. Contudo, em sentido restrito, a
geoconservação compreende apenas a conservação de certos elementos da
geodiversidade, que são dotados de qualquer tipo de valor superlativo que se
sobrepõem à média, e que sejam dotadas de valores científico, pedagógico,
cultural, turístico ou outros. Tais ocorrências constituem o que se designa normalmente
por património geológico.
Portugal
é signatário da maior parte da legislação e acordos no âmbito europeu e
internacional, relativos à conservação da natureza. Em Maio de 2004, o Conselho
da Europa aprovou o primeiro documento dedicado, exclusivamente, à
geoconservação. Trata-se pois, da Recomendação Rec(2004)3, adotada pelo
Conselho de Ministros do Conselho da Europa relativa à conservação do
património Geológico e de áreas de especial interesse geológico.
Nesta
sequência, apresenta-se um esquema ilustrativo do papel da geoconservação, dentro
da temática da conservação da natureza, considerando a definição proposta por Brilha
(op cit).
Esquema ilustrativo do papel da
geoconservação dentro da conservação da natureza
Fonte: Brilha (2005)
No final dos anos 80 e início dos anos 90, do século
XX, destacam-se alguns fatos marcantes para a consolidação e difusão da
geoconservação em nível mundial, os quais são enumerados e descritos a seguir e
que, segundo Wimbledon et al. (1999), consistem nos marcos efetivos de
implementação e sistematização da geoconservação numa escala global:
· Criação da “European Working Group for Earth Science Conservation” em 1988,
transformada mais tarde, no ano de 1993, em ProGEO - European Association for
the Conservation of the Geological Heritage.
· No ano de 1989,
criação da lista global de sítios geológicos – GILGES (Global Indicative List
of Geological Sites), um inventário mundial de sítios geológicos, atualmente
desativado, criado pela União Internacional das Ciências Geológicas (IUGS –
International Union of Geological Sciences).
·
Realização do 1º
Simpósio Internacional sobre a Proteção do Património Geológico, no ano de
1991, em Digne, na França. No final desta reunião, foi aprovada a Carta de
Digne, conhecida como Declaração Internacional dos Direitos à Memória da Terra,
que estabeleceu os princípios e pilares da geoconservação em nível
internacional.
· Realizada em 1993 em
Inglaterra, a Conferência de Malvern para a Conservação Geológica e da Paisagem
(Malvern Conference on Geological and Landscape Conservation).
· Realização do 2º
Simpósio Internacional sobre a Conservação do Património Geológico, no ano de 1996,
em Roma, quando foi criado o Projeto GEOSITES e estabelecido o grupo de
trabalho: GGWG – Global Geosites Working Group, da União Internacional das
Ciências Geológicas - IUGS, com o objetivo de:
a) elaborar um inventário global e informatizado dos
sítios geológicos de interesse global;
b) fazer a promoção de uma política de proteção e apoio
às ciências geológicas em níveis regional e nacional e,
c) estabelecer critérios e assessorar as iniciativas
regionais e locais para a realização de inventários.
Montanha Huangshan- China
Fonte: www.google.images
Na sequência destes fatos, no ano 2000, foi criada na
Europa a Rede Europeia de Geoparques, cujo objetivo principal é o de cooperar
na proteção do património geológico e promover o desenvolvimento sustentável
destes territórios (Zouros, 2004). Um geoparque,
na sua essência, consiste numa forma de gestão territorial focada na promoção
da geoconservação, devendo compreender um conjunto de geossítios de importância
particular, em termos de qualidade científica, raridade, apelo estético ou
valor educativo. Deve também possuir limites bem definidos e espaço suficiente
para promover atividades que contribuam para o desenvolvimento económico da
região, assim como, ser gerido por uma estrutura clara e bem definida, organizada
de acordo com a legislação nacional do país onde se insere.
Posteriormente, um grupo de especialistas da UNESCO,
reunidos em Paris no ano de 2004, criou a rede global de geoparques da UNESCO e
estabeleceu um conjunto de critérios para a inserção de membros nesta rede. Em
relação aos geoparques da rede europeia, foi estabelecido um acordo de
cooperação, para que os geoparques já existentes naquele continente fossem
automaticamente integrados na rede global. O conceito de geoparque, em larga
implantação em todo o mundo, vem contribuindo para a divulgação da geoconservação
na sociedade atual. Este conceito tem favorecido a criação de instrumentos
políticos e mecanismos de proteção e conservação do património geológico na
legislação de diversos países, bem como vem promovendo ações internacionais de
cooperação para a conservação deste património, servindo assim como uma das
práticas mais difundidas de geoconservação ao redor do mundo, confirmando o a
ideia mundial da conservação da natureza de “pensar globalmente e agir
localmente”. Os geoparques alicerçam-se na promoção do desenvolvimento
sustentável através da geoconservação.
Uma avaliação das iniciativas ligadas à geoconservação
ao redor do mundo revela que a Inglaterra destaca-se como um país pioneiro
nesta temática, uma vez que, desde o ano de 1950, com o florescimento dos RIGS (Regionally
Important Geological/Geomorphological Sites), iniciou-se neste país um conjunto
de ações sistemáticas focadas na inventariação do seu património geológico, com
vista à sua conservação. Estas ações passaram também a inspirar outros países
em ações semelhantes.
A Austrália também desponta com ações de relevo
focadas na conservação de geoformas, desempenhadas pela Comissão Florestal da
Tasmânia (Tasmanian Forestry Commission), no decorrer da década de 80, do século
XX (Sharples, 2002). Estas ações culminaram com ações governamentais na década
seguinte e contribuíram para elevar a importância da geoconservação naquele
país, bem como para a sistematização de abordagens teóricas desta temática, com
práticas que foram difundidas em todo o mundo. Uma avaliação da literatura
específica (Danilovic & Djokic, 2005; Theodossiou-Drandaki, 1999; Brilha,
2005 e Burek & Prosser, 2008) aponta que os países europeus ocupam um papel
relevante em relação à geoconservação, visto que, para além da política de
geoparques comentada anteriormente, muitos países deste continente contam com
recursos legais que, direta ou indiretamente, asseguram a conservação do património
geológico ou levantam a necessidade de realização dos inventários nacionais de
locais de interesse geológico.
Dentre estes países, destaca-se a Espanha, onde a lei
42/2007 aponta para a necessidade de elaboração do inventário espanhol de
lugares de interesse geológico, para o qual foi desenvolvida uma metodologia
específica através do Instituto Geológico e Mineiro da Espanha (García-Cortés
& Urquí, 2009).
Geopark Naturtejo
Fonte: www.google.images
Portugal também se configura como outro país
importante nesta temática, dentro do cenário europeu, com uma série de
trabalhos científicos focados na geoconservação, alguns deles fruto do único
curso de pós-graduação existente a nível mundial, voltado especificamente para
a geoconservação e o património geológico, sediado na Universidade do Minho, na
cidade de Braga. Foi publicada, em 2008, a nova Lei para a Conservação da
Natureza e da Biodiversidade, onde são apresentadas definições objetivas para
geossítio e património geológico, sendo que a conservação destes locais passa a
ser apontada como um dos objetivos de manejo das áreas protegidas (Brilha,
2009).
No resto do mundo, destaca-se ainda a Asia Pacific
Geoheritage and Geoparks Network (APGGN), onde quatro países, a saber: Irã,
Malásia, China e Austrália contam com geoparques inseridos na Rede Global da UNESCO.
Dentre estes países, destaca-se a Malásia, que venceu a candidatura para sediar
a 4th International UNESCO Conference on Geoparks, no ano de 2010. A China
também ocupa um papel importante, uma vez que, com 22 geoparques membros da
rede global da UNESCO, configura-se como o país com o maior número de
geoparques nesta rede, cujo escritório central está sediado na cidade de
Beijing.
Referências:
Brilha, J. (2005) Patrimônio Geológico e Geoconservação: A Conservação
da Natureza na sua Vertente Geológica. Palimage Editores, Viseu
Brilha, J. (2009) Geological Heritage and Geoconservation in Portugal. In: Carvalho, C. N. de
& Rodrigues, J. (Eds.): New Challenges with Geotourism- Proceeed ings of the
VIII European Geoparks Conference. Idanha- a- Nova Municipality and Geopark Naturtejo da
Meseta Meridional. Portugal, p. 31-35.
Burek, C.V. &
Prosser, C.D. (2008) The history of geoconservation: an introduction. In: Burek, C.V.
& Prosser, C.D. (eds) The history of Geoconservation. The Geological
Society, London, Special Publications, 300, 1-5.
Danilovic, Z. &
Djokic, N. (2005) Geoheritage in the Republic of Serbia from the aspect
of the Geological Lesgislation. In: 2nd Conference on Geoheritage of Serbia. Belgrade- Servia. p. 23- 26.
García-Cortés A. & Urquí L. C. (2009) Documento metodológico para la elaboración del
inventario Español de lugares de interés geológico (IELIG). Version 11, 12-03-2009. Instituto Geológico y Minero
de España . Disponível em: http://www.igme.es/internet/patrimonio/,
consultado em 2012-05-02
Pereira, Ricardo (2010), Geoconservação e desenvolvimento sustentável na Chapada Diamantina, Bahia-Brasil
Pereira, Ricardo (2010), Geoconservação e desenvolvimento sustentável na Chapada Diamantina, Bahia-Brasil
Theodossiou-
Drandaki, I. (1999) The Geoconservation in Greece: legal basis-
existing situation. In : Mem. Descr. Carta Geol. D´It. LIV (1999), p 375- 377.
Wimbledon, W. A. P.;
Andresen S.; Cleal C. J.; Cowie J. W.; Erikstad, L.; Gonggrijp G. P.; Johansson
C. E.; Karis L. O. & Suominen V. (1999) Geologial World Heritage: GEOSITES
– a global comparative site inventory to enable prioritsation for conservation.
In.: Mem. Descr. Carta Geol. D´It. LIV (1999),
p 45-60.
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